Desejo não, vontade!
Dorival tinha um sonho. Bom, não exatamente um sonho, um desejo. Desejo? Talvez fosse mais certo dizer que Dorival tinha uma vontade. Uma vontade louca, daquelas que nos consome.
Dizem que na gravidez as mulheres, não todas, têm vontades. Giselda, por exemplo, teve vontade de cupuaçu. Carlão, o marido, sequer sabia como era um maldito cupuaçu. Nem Giselda, que da tal fruta só ouviu falar, mas ver mesmo, não havia visto nunca. Mas a vontade, a vontade louca, na Giselda, culpa da gravidez, veio em forma de cupuaçu.
Pobre Carlão, que teve que rodar 100 quilômetros atrás da tal fruta. A vontade louca de Dorival nada tinha que ver com cupuaçu ou gravidez. Na verdade, pensando bem, Dorival e Giselda (e Carlão) sequer viviam no mesmo universo e só apareceram juntos nesta narrativa por digressão do narrador.
Dorival, voltemos ao Dorival. Dorival tinha um sonho. Sonho não, desejo. Desejo não, vontade. Uma vontade, louca. Quando menino, vivia na casa da avó materna. Lá passava as tardes quando os pais não podiam busca-lo na escola por conta das horas extras. Cabia então a avó a tarefa de buscar o menino e mante-lo sob seus cuidados.
Lá, na casa da avó, naquelas tardes supervisionadas, é que a vontade louca de Dorival surgiu. Religiosa até o último fio de cabelo, a avó de Dorival o cerceava de tudo aquilo que ela julgava demoníaco. Da programação da TV ao leite condensado, tudo era obra do tinhoso. Naquelas tardes, Dorival passava à bolacha água e sal e limonada.
Os limões eram plantados pela própria avó no pequeno pomar que havia no quintal. As bolachas vinham da mercearia do Seo Jonas, irmão de fé que assim como a avó, não dava mole para Satanás e só comercializava produtos aprovados pelo Reverendo Mathias. Maldito Reverendo Mathias, foi pensando nele e nas proibições da avó, ainda viva, que Dorival lambuzou-se todo, da cabeça aos pés, de leite condensado.
Leite condensado que, segundo a avó, era mais uma obra do tinhoso. Certa vez, quando o Dorival menino perguntou se tinha leite condensado na casa da avó, foi informado pela mesma que no inferno havia bacias e mais bacias de leite condensado borbulhante onde os demônios se banhavam. Aquilo, palavras da avó, era leite do diabo adoçado com o cuspe de Belzebu.
Bacias e mais bacias de leite condensado, a mente do Dorival menino guardou a cena e desde então uma vontade louca de meter-se dentro de uma banheira de leite condensado se apossou de Dorival. É hoje, pensou Dorival quando viu, no atacadão recém aberto na avenida principal, a lata de 5kg de leite condensado. Sequer viu o preço, pegou a lata, passou no crédito e partiu para casa.
Pegou o abridor de latas na gaveta da cozinha e abriu a danada. Despiu-se. Ergueu a lata sobre a cabeça e, ali mesmo na cozinha, deixou os 5kg de leite condensado escorrerem-lhe pelo corpo. Enquanto o leite do diabo adoçado com o cuspe de Belzebu descia-lhe por todos os cantos, a campainha tocou. Assustado, Dorival escorregou e caiu. Durante a queda, bateu a cabeça no mármore da pia.
A polícia encontrou-o morto 12h depois, quando Guiomar, a faxineira, encontrou o corpo de Dorival. O caso foi parar na TV. Jovem de 23 anos é encontrado morto, coberto de leite condensado. A família, perplexa, não sabia o que pensar, exceto a avó...
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